O Romance de formação e sua queda – Bildungsroman

(Resenha dos artigos escritos por Marcus Mazzari e Franco Moretti)

No artigo de Mazzari, temos que em meados do século XIX, seguindo as ideias de estética de George Hegel (filósofo germânico), surge o Bildungsroman, termo que define o romance de formação estreado por Goethe (escritor alemão e importante figura do Romantismo Europeu) em sua obra “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, publicado no final do século XVIII. Essa ideia define o gênero como sendo um estilo de literatura em que a história do personagem principal se inicia na infância ou juventude e amadurece ao longo da narrativa, como no caso de Wilhelm. Esse crescimento interior, no entanto, não ocorre de maneira alguma fácil, o que nos leva a viajar como leitores junto a situações inesperadas, escolhas desagradáveis, onde enxergamos uma alma hesitante armando-se contra um mar de dificuldades, dilacerada por dúvidas conflitantes, exatamente como na vida real. Nosso herói romanesco se depara, portanto, com tal confronto educativo da realidade que o leva a refletir sua posição no mundo, dentro os conflitos políticos e sociais que se insere, principalmente de cunho reformistas.

A estrutura da obra não é de fácil entendimento, por sua dimensão espacial e temporal (o personagem percorre praticamente a Europa toda em busca de sua felicidade em um período de dez anos), com muitos personagens itinerantes e de linguajar subjetivo, incompreensível, de profundidade e obscuridade poética que nos permite vivenciar um intenso lirismo.

Não podemos afastar o autor de sua obra, até mesmo porque chegou-se a cogitar que o romance era praticamente autobiográfico. Goethe coloca no centro deste romance o ser humano, a realização e o desenvolvimento de sua personalidade, influenciados pela sua própria experiência na Itália quando jovem.

O romance de formação, também conhecido como romance de aventuras, tem como paradigma a desenvoltura do ser humano nos assuntos mundanos, reais, substanciais, que o coloca em contínua transformação interior em busca de uma formação plena e harmônica, meta esta inalcançável. Além dos avanços pelas suas escolhas, tem-se o processo formativo através dos seus erros, seus arrependimentos, aparando suas arestas e iniciando sua posição no mundo.

Como quase que paradoxalmente, essa mesma busca interior pelo amadurecimento levou o romance de formação a uma crise que o dizimou. De acordo com o artigo de Moretti, as guerras que eclodiram no início do século XX levaram alguns escritores como Franz Kafka, Joseph Conrad e James Joyce por exemplo, a escreverem obras que ele intitula como sendo um ‘romance de formação tardio’. A juventude que antes passava por conflitos revolucionários, agora passa por conflitos que destroem sua significância da existência individual. A guerra faz com que sua psique seja mutilada, dizimada, traumatizada. Além do Eu extremamente à mercê do vazio da vida por conta das inúmeras mortes que a guerra causou, os jovens ainda passam a conviver em instituições que a priori deveriam servir como ponte para o mundo real que os esperam. Essas instituições (internato, igreja, exército) passam a ter uma relação na formação do sujeito, porém, ao dedicarem-se ao processo de integração do indivíduo em um sistema social, esta esquece-se do lado subjetivo, o lado que está dentro da mente do sujeito, falhando substancialmente no final.

Como consequência, os jovens que dela dependiam, nunca se sentem inseridos em qualquer parte que seja, vivenciando uma anulação existencial e social que retarda seu amadurecimento, passam a rejeitar seu crescimento para o mundo dos adultos, onde se sentem parte de uma massa antropológica, parte de um todo que sem eles, não há diferença alguma. Essa característica destrutiva explica por que é mais confortável regredir ao ponto da infância (onde a mãe é um porto seguro – assim como nas trincheiras da Primeira Guerra, a posição fetal era a mais segura) do que enfrentar um mundo externo completamente indiferente com o indivíduo. Assim como em ‘Retrato de um Artista quando Jovem’, Stephen Dedalus (o mesmo de ‘Ulysses’) tem que conviver com traumas que prevalecem em seu inconsciente, mesmo quando este o confronta. Esses traumas não são superados, apenas depositados no fundo do ser. Assim é a vida.

Na opinião de Moretti, sem fracassos, não existiria evolução literária, pois não seria preciso que ela existisse. E por fracasso literário, entendemos que é a forma simbólica do enfrentamento de um problema insolúvel (no caso do romance de formação tardio foi o trauma gerado). Houve um duplo fracasso: o estético e o social. A narrativa descontínua, como se fosse uma colcha de retalhos da memória (vai e vem entre tempos diversos), a destruição da unidade do Eu, a angústia semiótica das inevitáveis consequências regressivas, fizeram com o que o romance de formação se encontra-se em um beco sem saída. A evolução literária, por certo, não é linear (e nem tem como ser), e sim como uma sucessão de bifurcações.

Enquanto que para Mazzari o romance de formação foi crucial para que o personagem se construísse através de seu próprio fracasso, chegando a uma formação incompleta ou fracassada de seu eu, Moretti apresenta seu desfecho com a introdução de personagens na literatura que não somente deixam sua formação descontínua, a mercê de traumas e da destruição da unidade do Eu, como também se negam a amadurecer.

Bibliografia

MAZZARI, Marcus Vinicius. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: ‘Um magnífico arco-íris’ na história do romance”. Literatura e Sociedade, n. 27, São Paulo: FFLCH-USP, jan.-jun. 2018, p. 12-30. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i27p12-30

MORETTI, Franco. “‘Uma nostalgia inútil de mim mesmo’: A crise do romance de formação europeu, 1898-1914”. In: O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020, p. 345-367.


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