Um estudo social nos contos de Clarice Lispector

(Artigo publicado na Revista Territórios V.06 - Nº09 - Setembro 2024)

RESUMO
Este artigo aborda algumas das teorias da Sociologia Geral e Brasileira à luz dos contos e crônicas de Clarice Lispector, escritora conceituada da literatura brasileira com publicações entre as décadas de 1940 a 1970, questionando a importância da literatura para o entendimento da sociologia, estudando-a no contexto literário. Essa questão se justifica pela necessidade de uma contextualização mais aprofundada sobre o que é a sociologia apresentada em outras áreas, intertextualizada em questões morais, sociais e culturais dentro de grupos pertencentes a uma mesma sociedade. O objetivo central deste estudo é demonstrar a exposição de temas da sociologia com os enredos dos romances. Para isso, foi utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica através da literatura publicada desde o século XIX de historiadores, sociólogos e escritores além de duas coletâneas de Clarice Lispector, Todos os Contos e Todas as Crônicas, que foram os objetos de estudo. Esse propósito será fundamentado a partir da revisão bibliográfica das obras de Auguste Comte, Claude Lévi-Strauss, Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda, além de outros autores que fundamentaram suas obras com base nos sociólogos citados. O estudo esclareceu como a visão de uma escritora sobre a rotina de pessoas comuns em meio a uma sociedade comum está totalmente interligado com os resultados dos estudos, teorias e ensaios realizados pelos sociólogos e especialistas acerca da sociedade tanto como parte de um ser individualista, quanto como um grupo em função de suas regras e tradições. 

Palavras-chave: Clarice Lispector. Sociologia. Literatura Brasileira. Tradicionalismo. Conflitos familiares. A fala literária é a única verdade. Os artistas costumam ser tremendos mentirosos, mas sua arte, se for arte, não deixará de relatar a verdade de seu tempo. E é isso que importa. D. H. Lawrence  

1. CLARICE LISPECTOR NA SOCIOLOGIA 

Neste artigo busca-se relacionar a temática de alguns estudiosos da sociologia brasileira dentro da literatura nacional publicada entre as décadas de 40 e 70, especificamente em alguns dos contos e crônicas de Clarice Lispector (1920-1977), destacando a maneira como ela traz a problematização social como sendo algo do cotidiano e socialmente aceitável, tanto por parte do sujeito causador quanto por parte de quem sofre essa agressão moral e tradicionalmente aceitável. Qual a relevância da literatura brasileira, em especial as crônicas e os contos de Clarice Lispector, para a compreensão dos aspectos sociais brasileiros?

Embora as narrativas de Lispector tenham sido escritas há mais de 50 anos, os temas que permeiam suas histórias são de extrema atualidade social. De acordo com Canton (2016, p.289), o romance intimista tem seu início com a escritora, que escreve sobre a condição humana e o que dele resta quando somente a linguagem não basta.  Busca-se, portanto, dentro deste texto, identificar em suas escritas os problemas sociais que as pessoas insistem em perpetuar em sua culturalização do meio e a partir deles, formar um comparativo com a atualidade e sugerir remediações através de uma dialética literária. Como objetivo geral, será apresentado dentro da literatura brasileira moderna a representação social do individuo através das crônicas e dos contos e sua relação com os objetos de estudos da sociologia brasileira, sendo mais especificamente contos selecionados de Clarice Lispector relacionados com a realidade social do povo brasileiro, apresentando alguns pontos citados nas pesquisas de sociólogos dentro da literatura em questão e refletindo sobre a culturalização e aceitação da divisão de classes sociais; das tradições como normas morais e das relações de subordinação que procede a cada geração.

Sabe-se que o processo de socialização ocorre individualmente e de acordo com as suas particularidades, sofrendo suas interferências nas interações sociais tanto do ambiente quanto dos costumes que permeiam o individuo. Através do estudo da Sociologia Geral, chegasse na Sociologia Brasileira, que em meados da década de 1920, houve uma expansão literária através do surgimento de novas editoras, periódicos literários e salões de arte. Acredita-se no quão inegável é que nessa época, o Brasil fora invadido por movimentos intelectuais, buscando tecer uma conciliação entre a cultura dita erudita e a cultura então popular. É dentro desse contexto que se tem Clarice Lispector, importante escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia em 1920, com seus contos subjetivos carregados de identidade única, porém inconfundíveis, do sujeito estereotipado recheado das tradições e da cultura popular. Comte (2021, p.41-43) já defendia em seu ensaio que há uma íntima harmonia entre a ciência e a arte e que há uma feliz tendência em desenvolver um melhoramento prático da condição humana através da leitura. Lacerda (2017) durante seu curso de graduação expõe o “pensamento radical de classe média” como um movimento que buscava transformações sociais, porém não aderia uma ideia nem operária nem aristocrática, trazendo uma sociedade sufocada pela sua própria negação. Na literatura, essa ‘transformação sufocada’ aparece em forma de pensamento, mas nunca de ação.

A maioria dos contos de Lispector se baseiam em um ambiente de núcleo familiar que envolvem até mesmo os vizinhos, constituindo o que Kupper (2015) chama de ‘instituição social’, e chega a comparar sua organização através de regras e tradições como a do Estado ou da Igreja, como pode-se verificar nos contos ‘Feliz Aniversário’, ‘Os Laços de Família’ e ‘Onde Estivestes de Noite’, trazendo essa contínua da questão social, da instituição fomentada, da consciência tradicionalista e da empatia almejada mas não conquistada, até mesmo do mero leitor. Lispector faz parte do que Canton declara como “(...) chamada geração de 1945, considerada por alguns críticos como pós-moderna” (2016, p.289). Não há nada além do conto, assim como tudo está contido nele. Essa premissa também é reforçada quando Edward Said (2011) diz que “desde o princípio reconhecemos as histórias profundamente complexas e entrelaçadas das experiências específicas, mesmo assim interligadas e sobrepostas”. Tratar dos grupos sociais através dos contos de Lispector mostra o quanto as tradições, normas e moral comum transcendem o cotidiano de um traço coletivo para um marco individual, transformando assim o sujeito conforme seu meio, uma vez que se sabe que o homem é um ser social que ao se relacionar com os outros, no processo de socialização, adquire hábitos e costumes, os quais vão sendo agregados à sua personalidade individual. Portanto, é com base nessa dinâmica entre indivíduo e sociedade e seu comportamento familiar, que se busca nos textos de Clarice Lispector esclarecer as correlações sociológicas existentes nesses fenômenos de parentesco, onde “cada geração se encontra em relação de dominação ou a de subordinação para com a que a segue ou a que a precede” segundo Lévi-Strauss (2021, p.307) e o etnocentrismo se encontra acompanhado por um reforço de identidade do eu, se destacando em seu grupo, mesmo que levando em consideração a existência de uma diversidade cultural.

2. METODOLOGIA

Para a elaboração deste artigo, usou-se do conhecimento científico literário, com base na pesquisa qualitativa bibliográfica em materiais publicados em artigos acadêmicos e revistas disponíveis em sites institucionais nos últimos dez anos e em livros de autores e pesquisadores da área da Sociologia Geral e Sociologia Brasileira, além da utilização de duas coletâneas de Clarice Lispector: Todos os Contos e Todas as Crônicas, publicadas postumamente. 

3. A SOCIOLOGIA NA LITERATURA, E VICE-VERSA

3.1 A Sociologia da Cultura e alguns contos de Clarice Lispector

A literatura é uma das artes mais infundida no mundo desde seus primórdios com A Epopeia de Gilgamesh, o primeiro conto que se tem registro como escrita artística da humanidade datado por volta de 2600 a.C. A história retrata a vida e as aventuras de um rei, valendo-se do cenário da realidade local e de superstições da tradição oral. A partir do século XX, Canton (2016, p.15) explica que “escritores modernistas buscavam recursos estilísticos criativos, como o fluxo de consciência, e criavam narrativas fragmentadas representando a angústia e a alienação de seu mundo em transformação”. A sociologia surge no século XIX como uma ciência com o objetivo de responder questões do cotidiano, bem como formular novos questionamentos advindos das classes sociais, que até então eram inquestionáveis.

Em As crianças Chatas, Lispector (2018, p.11) traz “Não posso pensar na cena que visualizei e que é real (...) devoro com fome e prazer a revolta”. Essa revolta refere-se à desigualdade observada pela escritora, uma desigualdade trazida pelo capitalismo e pela péssima distribuição na divisão de trabalho e seu rendimento, estruturando uma sociedade determinada por indivíduos diferenciados ou não com base em sua miséria e pobreza. Na crônica tem-se a fome como tema central, causada por uma pobreza que aos olhos de quem vê é injusta, e às margens de quem a vive, é um castigo: “O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme.” A autora ainda repete por duas vezes a palavra resignação, uma em relação à mãe e seu filho e a outra com relação a ela mesma, provando que a aceitação das divisões de classe e suas consequências não é tão refutada como se defende em muitos discursos marxistas.  Da mesma forma que Lispector escrevia sobre a fome, também escrevia sobre a falta de consciência dos adolescentes de classe social mais abastada, como pode-se ler em Gertrudes Pede um Conselho, onde uma jovem cujo nome deu origem ao título, está passando por uma consulta psicológica com uma doutora e esta de súbito pensa irritada como a jovem sentada à sua frente tem problemas existenciais irrelevantes “Tanta gente morrendo, tantas ‘crianças sem lar’, tantos problemas irresolúveis (...) e aquela guria, com família, boa vida burguesa, a dar-se importância” (LISPECTOR, 2016, p.119), quase como que justificando Max Weber, que desenvolveu o conceito de ação social, afirmava que as sociedades estavam cada vez mais complexas, e seus indivíduos com objetivos cada vez mais conflituosos. (PAIXÃO, 2012, p.131)  Ou seja, ser pobre é um problema, mas ser rico também o é. Passar fome é ultrajante, revoltante, assim como um banquete com mesa estonteantemente farta também. Nota-se, portanto, que a sociedade se molda conforme sua interação em conjunto, construindo sua identidade humana, e logo, sua identidade cultural, como representação dos grupos de indivíduos com senso comum conectado pela música, literatura, linguagem e arte.

A cultura compartilha um sistema de símbolos e significados vivenciados por membros de uma sociedade que faz com que uma vida em comum permeie entre eles, influenciando em todos os aspectos da vida humana, incidindo por dimensões que se considera ser de domínio natural ou psicológico, levando a crer que sua criação se baseia em estruturas simbólicas, interpretativas, que modelam o comportamento do ser humano. Pode-se citar como cultura manifestações artísticas, que além do teatro, música, cinema, folclore, envolve também o conhecimento, que não é inato, geneticamente transmitido como já se chegou a acreditar em séculos passados, mas aprendido e aprimorado (ou não) ao longo da vida do sujeito e suas gerações.  Na crônica Lição de Piano pode-se entender essa cultura do aprendizado quando um pai de família simples decide que as filhas deveriam aprender a tocar piano, “Meu pai queria que as três filhas estudassem música. O instrumento escolhido foi o piano, comprado com grande dificuldade. (...) uma de minhas irmãs tinha talento verdadeiro”. A busca por essa interação entre grupos de tempo e lugar específicos, envolvendo uma linguagem exclusivista, crenças, costumes, bem como literatura, arte e música, compõe uma identidade cultural intrínseca que nos leva a questionar: qual grupo seria esse que o pai almejara para as meninas? Seria de um status social mais elevado que o seu? Seria o de desenvolver uma aptidão que futuramente as ajudaria para realizar um casamento dito apropriado? Lispector não deixa claro seu objetivo, pois atem-se a falar sobre sua professora de piano e como ela tornou-se mesmo uma bela escritora, “E meus dedos não são frágeis. Eu tenho uma força, eu sei.” como uma alusão à sua força nas palavras, transformadas em contos, transformadas em reflexão.

Com relação aos negros, José de Alencar (apud LACERDA, 2017, p.90), respeitadíssimo escritor romântico brasileiro (1829-1877), dizia que a “a miscigenação (...) apresentava um papel civilizador, especialmente para os escravos.”. Também defendia que no caso dos ex-escravos libertos através da abolição de 1888, suas condições de vida tornaram-se terríveis, sendo largados à própria sorte, acarretando sérios problemas e desafios sociais. Esses problemas sociais geraram uma violência por parte da segurança pública, entre eles, a polícia militar que não de hoje tem-se relato de sua ação por vezes exagerada. Na crônica Mineirinho, a cronista escreve com grande pesar a morte de um assassino com 13 tiros, onde se questiona até que ponto a justiça está de fato sendo justa:

“Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.” (LISPECTOR, 2016, p.390)

Entre os grupos sociais há sempre um jogo constante e permanente de tensões, oposições e contradições, o que Émile Durkheim (1858-1917) defendia como sendo parte de mudanças culturais externas provocadas pelo contato entre sociedades distintas, uma vez que mudanças do ‘eu’ é reflexo das escolhas autoconscientes do indivíduo durante toda sua vida, representando padrões de comportamentos, expectativas e atitudes conforme aprende em sua interação com o outro.  

3.2 As tradições nos contos e crônicas

Émile Durkheim, cientista político e filósofo francês do século XIX considerado o pai da sociologia, dizia que a instituição social compõe um conjunto de regras e costumes socialmente homogêneos para preservar a organização de um determinado grupo, sendo assim, são tradicionalistas por essência. Por instituição entende-se a família, a escola, a igreja, o casamento, ou qualquer outro aspecto social que venha a ser considerado cristalizado por uma realidade exterior. Essa teoria durkheimiana pode ser facilmente retratada no conto Feliz Aniversário, durante o aniversário de 89 anos de uma matriarca que está sendo celebrado porque assim deve ser e muitos dos convidados, entre noras e filhos, se encontram no aniversário por se tratar de uma tradição na família sem qualquer menção afetiva ou de interesse fraterno próprio. A presença de cada membro é algo esperado pelos demais integrantes, para que o grupo possa realizar a interação adequada aos costumes, porém não há apreço nem simpatia, como lê-se: “a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada”.  Tem-se apenas a teatralidade da confirmação da presença como fator decisivo de pertencimento desse núcleo familiar, porém, sem agregar quaisquer sentimentos genuínos ao que se considera como verdadeiro intuito da reunião familiar: a celebração de mais um ano de vida. Essa quebra ocorre justamente pelo principal sujeito, motivo de toda essa manifestação festiva: a aniversariante. Ela não quer ninguém ali, ela não entende o porquê de toda aquela gente que ela sequer reconhece, ela quer apenas que seu jantar seja servido, que por algum motivo incompreensível a ela, não estava sendo oferecido no horário de sempre.

“Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. [...] E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse.” (LISPECTOR, 2016, p.179)

Lacerda (2017, p. 77) explica que “nas sociedades modernas, há inúmeras situações de conflitos entre os valores familiares, internos a cada família, e os valores nacionais, compartilhados por todos os cidadãos do país”, como na narrativa de um dos filhos da aniversariante que não quis comparecer por problemas internos na família “o marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados”, o mesmo ocorre com uma das noras que cumprimenta a todos com “cara fechada aos da casa”. Por que ir a um aniversário, a um evento em família, se não se quer estar com eles? O que alavancaria participar de algo que não traz prazer nem gera memórias plausíveis? Dentro de cada um e de cada grupo social, por mais estranho que pareça, são dotados de costumes e crenças com racionalidade e coerência próprias. Isso explicaria a necessidade de participar, mesmo que para constar a presença a terceiros, já que o homem não se sujeita às imposições do meio, mas também é incapaz de controlá-lo. No conto A Repartição dos Pães (LISPECTOR, 2016, p.280), logo no primeiro parágrafo há um advérbio de modo bastante curioso: obrigação. “Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação.”. Ora, se você está convidado, quer dizer que em termos você pode recusá-lo, no entanto, quando da colocação da obrigação, percebe-se que socialmente tal convite não pode ser rejeitado, pois o convite perde a sua característica de convidar e passa a ser tratado como imposição. E todos daquele grupo comparecem, a contragosto ou não. A história permeia basicamente no momento em que todos da família se senta à mesa para almoçar e há pães dispostos, que são repartidos enquanto a conversa flui, e embora não seja citado, levando a crer que é o famoso almoço de fim de semana na casa da vó.

No entanto, da mesma forma que há cernes familiares indissolúveis independente do argumento, há também um outro tipo de grupo: aquele que não interage entre si em detrimento do mesmo tradicionalismo que deveria uni-los. Uma das particularidades da sociedade brasileira no século XIX era quanto à pluralidade dos núcleos de povoamento, ou seja, a sua dispersão, com poucos vínculos entre si, determinada às vezes pelas características do ambiente ou pelas condições climáticas. A Partido do Trem (LISPECTOR, 2018, p.461), é um conto sobre duas mulheres, uma jovem e uma idosa, que ficam juntas no mesmo vagão de trem sentido interior, para as fazendas. A história é um tanto triste por sua solidão em si, mas também nos mostra como esse exílio por vezes é necessário para começar a viver, ou terminar de morrer, como quando Angela, a personagem mais nova, pensa sobre seu casamento “Fugi de você, Eduardo, porque você estava me matando com essa sua cabeça de gênio”. O mesmo ocorre com Maria Rita, a idosa que não para de pensar enquanto continua o silêncio “Podia alcançar fácil, fácil, cem anos, pensou confortavelmente. E morrer de repente para não ter tempo de sentir medo.”. Podemos notar que ambas são incentivadas pelo ‘ambiente’ que viviam e se recusam a continuar, desvinculando-se das poucas pessoas que as mantinham dentro de um sistema social particular sufocante.

Em contrapartida, o historiador, sociólogo e escritor brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), um dos mais reconhecidos e importantes autores de obras da Sociologia Brasileira, dizia que havia uma herança colonial portuguesa em meio ao povo brasileiro: a do homem cordial. Por homem cordial, ele explicava como sendo “aquele que age com base no coração (...), levando em consideração os afetos que mantêm entre si, o que faz que as relações sejam pessoais.”. Contudo, a democracia fazia com que o sujeito se despersonalizasse, agindo conforme a lei de forma impessoal, favorecendo regimes autoritários, principalmente durante o processo de urbanização. Nota-se essa condição na crônica San Tiago (LISPECTOR, 2018, p.65), onde escreve “Não, nem todo tipo de lucidez é frieza. San Tiago Dantas, por exemplo, que era acusado de frieza. Mas o próprio Schmidt se contradizia a respeito.”, tratando sua cordialidade como distinta de sua afetuosidade e logo seu afeto como uma premissa para sua diplomacia “Um dia recebo um convite impresso para um banquete com discurso político de San Tiago. Quem se lembraria de me convidar para isso, senão ele? Fui.”. Até meados dos anos 90 vivia-se uma modernidade consolidada em indivíduos que buscavam seu prazer com base em um estilo de vida autogarantida, racional, organizada e de certa forma previsível e estável, justificando um senso unificado de sua representatividade social, nas suas disposições corporais, gestos, pela maneira como riem, falam, andam e se socializam.

3.3 As Relações e interações de subordinação de cada geração mostradas nos escritos de Lispector

O demérito do estigma resulta das expectativas comuns entre membros de uma sociedade compartilhando atitudes a respeito do que esperar das pessoas em certas situações sociais e como essas pessoas deveriam se comportar ou parecer para distingui-las de outros grupos sociais. Lévi-Strauss (2021, p.193) reafirma essa suposição do ser na sociedade quando diz que “Agimos e pensamos por hábito, e a formidável resistência que se opõe a seu desrespeito, ainda que mínimo, provém mais da inércia do que uma vontade consciente de manter costumes cuja razão fosse compreendida.”.

O Desastres de Sofia (LISPECTOR, 2016, p.35), trata da história da menina Sofia de 9 anos que era encantada pelo seu novo professor, mas infernizava suas aulas “Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia as lições com piadinhas”. Suas atitudes, fruto da imaturidade ao lidar com seus sentimentos, reforçavam ainda mais a certeza de um amor que ela mesma descrevia como sendo libertador, embora estivesse apenas aborrecendo cada vez mais seu professor, “Eu queria o seu bem, e em resposta ele me odiava”. Em um dado momento, ele pediu a composição de uma história que ela propositalmente escreve de forma incoerente, chegando à conclusão de um tesouro escondido, apenas para chamar a atenção. O professor, contrariando a expectativa de rebeldia da estudante, ao ler sua escrita a elogia, deixando a menina com raiva, fazendo-a se sentir traída, destruída, ocorrendo exatamente a inversão dos papéis entre amar e ser amado. Não seria exatamente isso que Lispector buscava enaltecer com seus contos? Ainda nos ensaios de Lévi-Strauss (2021, p.61), pode-se ler que “os fenômenos que cabem propriamente às pesquisas sociológicas e antropológicas são definidos em função de nossos próprios interesses: dizem respeito à vida, à educação, à trajetória e à morte de indivíduos semelhantes a nós.”. Os contos e crônicas de Clarice Lispector são sobre nós e para nós, eis porque seus escritos são tão envolventes, tão reais.

Entre seus contos fantasiosos e sublimes, a subjetividade do sujeito em detrimento do outro não falta em meio às palavras que compõe o conto Obsessão (LISPECTOR, 2016, p.35), que traz Cristina, uma mulher casada com Jaime e aguarda pacatamente todos os eventos formais esperados de sua época: ter filhos, ser uma boa mãe e esposa e se ocupar dos afazeres domésticos, “as pessoas que me cercavam moviam-se tranquilas, (...) num círculo onde o hábito há muito alargara caminhos certos”. Porém todo esse cenário pacífico muda quando ao sofrer de febre tifoide, se vê obrigada a passar uma temporada em Belo Horizonte para que os ‘novos ares’ pudessem ajudá-la a melhorar. É durante sua estadia sem seu marido que conhece o enigmático Daniel, e sua vida passa a ser uma ansiedade entre a busca por uma paixão, seu papel social e sua obsessão por Daniel, que pouco caso lhe faz, mas a tem como sua amante “Tudo se entrelaçou, confundiu-se dentro de mim e eu não saberia precisar se meu desassossego era o desejo de Daniel ou a ânsia de procurar o novo mundo descoberto”. Após voltar para casa, Cristina decide abandonar seu marido para ficar com Daniel, que muitos meses depois lhe pareceu tão enfadonho quanto o primeiro, e por esta razão, retorna à sua casa e decide dar continuidade à sua vida como se nada tivesse acontecido. Muito embora sua mãe tenha enfartado e vindo a falecer por conta de seu ato fugitivo, e seu pai se refugiado no interior de São Paulo na casa de seu tio por vergonha, Jaime a aceita de volta sem nunca tocar no assunto. Cristina continuava vazia, mas desta vez, consciente de seu vazio. Como Herbert Marcuse (apud THORPE, 2016, p.187), sociólogo e filósofo alemão expõe “estamos hipnotizados num estado de extrema conformidade em que ninguém mais se rebela” e por esta razão quando Cristina se viu sem o marido para se justificar e livre para cometer seu ato pecaminoso, Marcuse continua “Perdemos o senso de verdade interior e de necessidades reais e não podemos mais criticar a sociedade, porque não podemos mais achar uma forma de nos posicionar fora dela sem parecer que perdemos nossa sanidade.”. Lévi-Strauss (2021, p.29) traz uma reflexão mais aprofundada sobre essa questão do posicionamento social da mulher e seu papel conforme esperado, posição esta que levou a protagonista a se deixar levar pela emoção sem mesmo ser correspondida, pelo simples fato de poder sentir-se no direito de ao menos tentar, “os modos à mesa, os hábitos sociais, as regras de vestuário e muitas de nossas atitudes morais, políticas e religiosas são escrupulosamente observados por cada um de nós, sem que sua origem ou verdadeira função tenham sido objeto de reflexão demorada.”. Há muitas gerações, tem-se como premissa que a esposa deve cuidar da criação dos filhos, do bem do lar, enquanto o marido tem como função principal ser provedor financeiro da casa, e quando esse pressuposto é colocado em xeque, estruturas sociais internas podem vir a ruir.

No entanto, não somente nos contos tem-se a sociologia pautada em seu conteúdo. Na crônica Carta Atrasada (LISPECTOR, 2018, p.276), a autora escreve a um crítico literário sobre um livro que há muito ela havia esquecido que tinha lido, e passa a criticar de maneira oposta tudo o que ele havia dito, porém de uma forma totalmente singular, respeitosa e pessoal, “O senhor disse tantas coisas verdadeiras e bem-ditas e que encontraram eco em mim – que por muito tempo não me ocorreu acrescentar a elas nem a mim mesma outras verdades também do mesmo modo importantes”. A sua essência como escritora chega a se confundir durante a sua defesa com relação ao que ela pensa da personagem do livro em questão, Lucrécia Neves, que constrói uma realidade através do subjetivo, e o que antes era imaginário passa a existir, somente porque Lucrécia assim o fez, como pode-se notar no trecho “O que é que eu quis dizer através de Lucrécia (...) que nele a impressão já é a expressão”. Ainda continua “Quando digo que Lucrécia Neves constrói a cidade de S. Geraldo e dá-lhe uma tradição, isto é, de algum modo claro para mim.” Estaria Lispector dizendo de si mesma, reconhecendo-se como sendo parte da personagem? Para Comte (2021, p.41), a especulação se dá através daquilo que é sugerido e sustentado, é como a “inércia natural de nosso intelecto a disporia frequentemente a satisfazer suas frágeis necessidades teóricas com explicações fáceis, mas insuficientes, enquanto o pensamento da ação final evoca sempre a condição de uma precisão conveniente”. O mesmo diz Thorpe (2016, p.206), que traz em sua coletânea que o que se faz por costume se faz sem muito refletir “Em vez disso, nos comportamos assim porque a cultura à qual pertencemos nos compele a sermos assim. A cultura na qual vivemos molda a maneira como pensamos, sentimos e agimos nas formas mais invasivas possíveis.” Ou seja, Clarice Lispector escrevia para um crítico como se ela estivesse escrevendo de si para si mesma. Lucrécia está em Lispector como Lispector está em Lucrécia: sempre construindo algo que do imaginário passa a ser real. Uma realidade inventada, uma realidade imaginada, mas uma realidade. As mulheres com vários privilégios sociais, por serem brancas, heterossexuais e ricas, talvez prefiram demonstrar uma única forma de opressão, em vez da interseccionalidade de vários tipos de opressão. Comte (2021, p.194) também dialogava que determinados conceitos deveriam ser considerados tanto como fenômenos humanos, e não simplesmente individuais, mas também como sociais, já que resultam de uma evolução coletiva e contínua onde seus elementos e fases estão todos conectados: “Algum grau de estigmatização está presente em quase todas as relações sociais: somos todos passíveis de ser estigmatizados em algum momento.”.

O conto Felicidade Clandestina (LISPECTOR, 2016, p.393-396) encerra a análise social dentro da literatura em questão, contando a história de uma criança de nove anos apaixonada por livros que tem como colega de sala uma menina, filha de um dono de livraria. Descrita como cruel, a garota gostava de ver a narradora sofrer enquanto esta lhe implorava por um livro emprestado “Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia”. Ao longo de muitas visitas à sua casa, sempre a fazia voltar ao dia seguinte com a desculpa que o livro estava emprestado para outra pessoa, “E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso”. Um determinado dia, a mãe da menina má estranhando aquela visita diária, percebeu o que estava acontecendo e acabou por emprestar o livro que a narradora tanto queria, por tempo ilimitado, o que a fez sentir uma felicidade clandestina, pois sabia que essa felicidade teria um prazo, mas ainda assim, ela o sentia com muita satisfação, “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.” Nota-se, portanto, a necessidade de se compreender como a cultura da subordinação em relação ao outro é essencial para buscar meios de entender, jamais justificar, o porquê as pessoas pensam e agem da forma como fazem. Por que a garota era tão malvada? Por que não emprestar um livro que não lhe fazia falta? E a narradora, por que tanto insistir em sua humilhação ao invés de tentar por outros meios obter o livro em questão? Para se entender essa cultura do menosprezo, deve-se interpretar o que permeia o sujeito, e não simplesmente ser entendido como um evento de causa e efeito. Além das estruturas sociais, existem estruturas culturais, baseadas em símbolos e signos que dão sentido aos moldes da padronização social.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A respeito desta íntima harmonia entre ciência e arte, é importante por fim destacar especialmente a feliz tendência daí resultante para o desenvolvimento e consolidação da ascendência social da sã filosofia, consequência espontânea da preponderância evidentemente obtida pela vida industrial em nossa civilização moderna.”. Auguste Comte (2021, p.42)

Quem foi Clarice Lispector? Lispector era uma incógnita para ela mesma. Nascida na Ucrânia em 1920, veio para o Brasil ainda pequena aos 2 anos de idade, fugida com a família da Guerra Civil Russa, que logo tornara-se a Primeira Guerra Mundial. Foi uma importante autora de contos, ensaios e romances do século XX. Casou-se ainda nova em 1943, e teve dois filhos a quem se dedicava entre seus escritos, conforme uma diarista uma vez relatara, pois cuidava da casa ao mesmo tempo que datilografava em sua máquina de escrever apoiada em suas pernas. Clarice escrevia para si sobre o que acontecia no mundo. Observava, indignava-se, tinha raiva, e escrevia. Escrevia sobre o povo, sobre seus empregados, sobre as histórias que ouvia e sobre si mesmo. Por esta razão, este artigo buscou mostrar a Sociologia contida em suas narrativas, importante instrumento para a análise e a percepção dos fenômenos próprios do existir e do conviver em sociedade, com base na cultura, na divisão de classes, das normas morais e das relações de subordinação que permeia o grupo social com base em suas próprias premissas. A história da sociedade é uma história existente com base na luta de classes, na luta pela igualdade dos direitos humanos, da mulher, do jovem e da criança, igualdade cultural, respeitando a identidade formadora do indivíduo, contrariamente ao interesse de um conjunto muito bem definido de costumes e instituições a quais deve-se respeitar e perpetuar. Reflete-se sobre os desgostos que esses costumes trazem através da literatura, envolvido em situações por vezes semelhantes e abrindo caminhos cujos alicerces estruturam a vida, mas podem ser quebrados, podem ser questionados, modificados, excluídos. O intuito deste artigo não é demonstrar compassivamente o grotesco cotidiano, mas criticá-lo, envolvê-lo em algo mais que venha a desatar as amarras sociais tradicionalistas de classe e culturalização imposta pelo próprio grupo social através da leitura contínua, assídua e reflexiva de contos, crônicas e romances da modernidade e da pós-modernidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LACERDA, Gustavo B. Pensamento Social e Político Brasileiro. Curitiba: Intersaberes, 2017. LÉVI-STRAUSS. Claude. Antropologia Estrutural. Vol. 7. São Paulo: Folha de São Paulo, 2021. LISPECTOR, Clarice. Todas os Contos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
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