Contos

por Liz Fazzio, escrito entre 2002 e 2011

A Amiga Inimiga

Contos e mais contos. Qual deles escrever? Parece que o mundo da imaginação correu por entre minhas mãos. Vou contar então uma história que envolve uma amiga da amiga da minha amiga, e obviamente o nome não citarei. Ela entra em sua vida como uma qualquer. Ela pode estar em uma festa, em um grupo de amigos, na escola, no trabalho, em qualquer lugar. Basta ela ser convidada por alguém. Quando você a conhece pela primeira vez, tanto ela influencia que depois de um tempo lhe dá dor de cabeça, náuseas, dor de estômago e até tremedeira. É duro ver alguém passar pelos sintomas que ela causa. A princípio, ela é uma amigona, mas depois que ela vai embora, você a quer de volta, chamá-la a qualquer custo. Mas não são todos que possuem seu telefone. Então você se desespera. Maldito dia que meu melhor amigo a conheceu. Eu estava junto, mas não dei muita atenção a ela. Ele sim. Ela o fez gastar fortunas, dinheiro que várias vezes ele nem possuía, só para mantê-la ao lado dele. Ele dizia que ela era engraçada, lhe dava ânimo quando mais precisava, e às vezes se sentia muito mais inteligente. Mas será que ele estava sendo inteligente estando ao lado dela? Até força e coragem para fazer aquilo que ele não conseguia ela ajudava. Mas também com ela vieram as brigas. A depressão, a infelicidade de ter-lhe confessado seus segredos. Ele não confiava mais em mim, só queria saber dela. Eu senti ciúmes, não nego. Mas eu não podia e nem conseguia fazê-lo parar de conversar com ela. Estava em toda parte, onde quer que estivéssemos, lá estava ela cumprindo seu papel de maldita. Era assim que eu a chamava. E ele sabia que eu não gostava dela. A repudiava, e sempre dava um jeito de ir embora do local que ela se encontrava, mas infelizmente eu não conseguia levar meu amigo embora comigo. Bruta, de seu jeitinho meigo, não é bonita nem feia, mas encanta. Não sei como. Livrar-se dela não é fácil. Já vi gente tentando não mais ter contato com ela, mas não conseguia. Uns conseguiram, mas havia outros que nem com reza se desfazia dela. Ela destrói sem jamais ser destruída. Imaginem só se até para casa eles a levam. E ela se acostuma a visitar constantemente, porque se sente parte da família, parte da sua vida. É uma praga. Praga essa difícil de aniquilar. Se um dia a conhecerem, fujam, ignorem-na, enquanto há tempo. Porque depois que você se acostuma, é um Deus nos acuda.

15 anos 

15 anos. Não precisava provar nada a ninguém. Mas a si mesma, ainda devia muito. Em sua mente ainda adolescente, sabia que não queria namorar. Não sabia o que era namorar. Na realidade, nunca ninguém havia lhe proposto qualquer relacionamento sério. Dos poucos casos, o mais duradouro fora um rapaz da sala de aula ao lado, do terceiro ano, que ficara com ela por três meses, mas nada de namoro. Era um encontro todos os dias na hora do intervalo, com direito a beijos e amassos, além do lanche. Mas algo ainda faltava. Terminaram, por iniciativa dela. Seu pomposo aniversário em meado de março, com direito a festa para 150 pessoas, vestido cor púrpura e valsa com o pai, não foi recebido com tanta alegria por sua alma quanto estampava seu rosto. Algo faltava. No passeio de comemoração de fim de ano do ‘segundão’, conheceu um rapaz que não fazia parte da turma do colégio. Fora convidado por um dos estudantes. Parecia caçar gaviões com seus olhos. O olhar percorria todas as meninas como se estivesse prestes a atirar. As garotas por sua vez, desfilavam de um lado a outro, sempre com a desculpa de algo buscar na mochila, com a colega, com o monitor. Em paralelo, havia grupos de jovens que jogavam baralho, que estavam em rodinhas de vôlei, que conversavam sobre o último jogo do campeonato de futebol que passara na tv na noite anterior, havia aqueles que pintavam em um caderno, e os demais que comiam na imensa mesa do piquenique. Melissa não estava em grupo algum. Nunca pertencera a qualquer panelinha e nesse dia não ia ser diferente. Encostada em um tronco de uma árvore centenária, lia um livro de Álvares de Azevedo sob a luz do sol. Na realidade, fingia ler, porque apenas pensava enquanto folheava as páginas amareladas do livro antigo. Pensava na vida que estava passando. Pensava na infância a pouco deixada. Nos anos de estudos mal aproveitados. E nos namorados que não tinha. Não sabia se não os tinha porque não queria ou porque nunca fora quista. Fora seu pouco caso que provavelmente chamara a atenção do intruso. Melissa tinha uma beleza comum. De pele branca, cabelos castanhos claros longos, poucos seios, uma barriga lisinha, pernas torneadas pelo handball, e um quadril ainda em formação, fazendo de seu bumbum algo deliciosamente atraente. Tudo o que uma adolescente o é. Já ele, aos seus 17 anos, era um moreno atlético, com um corpo malhado a custa de muitas horas na academia, bobo de conversa e dono de uma risada enfadonha. Básico de meninos. Uma sombra sobre sua pessoa a fez levantar os olhos do livro. Franzindo a testa, tentou identificar de que era aquele corpo que acabara de tapar seu sol. O corpo tinha nome: Bruno. De sorriso safado, sentou-se ao seu lado e tratou de conversar. Conversas com frases curtas que geralmente demonstram o desinteresse da pessoa no assunto, porque conversam com interesse demais. Trocaram e-mail e combinaram de sair algum dia desses para um cinema. Melissa já havia enviado mais de dez e-mails em uma semana, quando finalmente houve um retorno. Era um recado simples e objetivo: Me encontre amanhã no shopping às 14h, vamos ao cinema. Vista algo legal. Bruno. Algo legal. O que seria algo legal? Um jeans da moda? A blusinha com decote que as meninas usam? As roupas que geralmente vestia? Algo atlético? Algo específico que as meninas usam para ir ao cinema? Era um simples pedido, com uma resposta extremamente complicada. Passou a tarde inteira daquele dia e mais a manhã toda do dia do encontro pensando no que poderia ser legal. Resolveu então colocar uma blusinha branca com estampas em cinza e um short jeans mais agarradinho. Calçou suas sandálias baixas e passou gloss após pentear o cabelo e deixá-lo com um rabo de cavalo. Foi então que notou o quão ansiosa estava por esse encontro. Nunca tinha sentido nada parecido. Nunca ninguém a fez perder uma boa noite de sono por causa de um cineminha. Tranqüilizou-se respirando fundo e dizendo que tudo daria certo. Era um rapaz mais velho, algo tinha de acrescentar em sua vida. Às 13h30 já se encontrava de pé no hall do cinema. Como não sabia ainda que filme iriam assistir, não se adiantou em comprar o ingresso. Às 14h10 ele apareceu. Infelizmente esses 10 minutos pareceram uma eternidade, milhões de coisas começaram a surgir em sua mente: será que ele desistiu? Será que não quer mais sair comigo? O que foi que eu fiz de errado? Estou sendo usada como um bonequinho para que os amigos dele tenham do que rir depois? Mas graças aos bons deuses, ele chegou. Perfumado, com o cabelo batidinho e vestindo uma camisa pólo preta que o deixava com aparência de mais velho. Apenas deu um sorriso e disse: Poxa, achei que você fosse vestir um mini-saia pra mim! Melissa fez cara de interrogação. Escolheram o filme que começaria às 14h30, para não perderem tempo do lado de fora. Era um filme de ação, gênero que nunca agradou a Melissa, mas ela não se importou. Era o primeiro encontro deles e ela não queria deixar a impressão de chata logo no começo. Entraram com dois pacotes de pipoca e refrigerantes. Logo que sentaram, ele começou a passar a mão pelo seu pescoço, beijando seu rosto até chegar em sua boca. O beijo foi doce. Mas foi forte, os dentes batiam e a língua dele não parava, mal dando tempo a ela de respirar. Quando os trailers começaram, a escuridão do cinema permitiu que ele passasse a mão em outras parte de seu corpo. Por dentro da blusa, por dentro do shorts, mas por ser muito apertado não conseguiu ir muito além disso. Ele bem que tentou que ela abaixasse um pouco, mas Melissa relutou. Então, como uma forma de compensar o que ele não podia tocar, abriu seu zíper da calça e a fez conhecer o que havia por detrás de todo garoto na puberdade. Como não sabia muito bem o que fazer com aquilo que estava em suas mãos, ele a ajudou fazendo os movimentos de cima pra baixo, enquanto ele não parava de beijá-la com uma de suas mãos em seu seio. O filme mal estava começando quando ele deu um gemido baixo em seu ouvido e ela sentiu algo quente em suas mãos. Cheirava forte, coisa que ele logo tratou de limpar de si. Ela, que se virasse. Melissa foi então um tanto constrangida ao banheiro, tratando de não mostrar a ninguém o que continha em suas mãos. Lavou-se e quase chorou. Não sabia ao certo se de medo, de vergonha ou de felicidade. Acabara de fazê-lo homem. Em sua cabecinha. Quando saiu do banheiro, ele a esperava do lado de fora, e disse um tchau adiantando que no dia seguinte eles iriam a um outro lugar. Deu-lhe um beijo no rosto e virou as costas. Ela não teve tempo de responder, fitando-o até desaparecer. Quando chegou em casa, foi diretamente a seu quarto para pensar na tarde romântica que tivera. Adormeceu sonhando no lindo passeio de mãos dadas que teriam em um parque que ele a levaria no dia seguinte. Ao abrir sua caixa de mensagens logo pela manhã, o e-mail tão esperado a fez disparar o coração e abrir um sorriso em seu rosto nunca antes visto: Meu pai liberou o carro. Te pego na entrada do shopping hoje as 13h. Não se atrase. E use uma roupa legal desta vez. Bruno. Não havia uma despedida com beijos, abraços e nenhuma palavra de carinho. Mas mesmo assim ela se sentiu a pessoa mais amada do mundo. Desta vez, ela sabia muito bem o que ‘roupa legal’ queria dizer. Pegou sua única mini-saia, e colocou uma blusinha mais folgada. Não poderia haver erros hoje. Afinal, mesmo ele sendo menor de idade, o pai lhe havia concedido o carro, o que provavelmente significava alguma visita na casa dele depois do passeio. 13h. Nem almoçado havia. Não tinha conseguido pensar em comer, morrendo de medo em se atrasar ou de não ter tempo de escovar bem os dentes. Sua mãe estranhou, mas, não havia por que ficar preocupada. Achou que a filha se encontraria no shopping com as amigas para comer um lanche, afinal, estavam em período de férias e nada mais natural do que a turminha se encontrar para se divertir. Ao menos fora esse o motivo que a filha havia dado para sair mais uma vez. Um carro prata, de modelo popular, estacionou na frente o tempo suficiente para que Melissa entrasse. Ao bater a porta, Bruno logo começou a dirigir. Nenhum beijo. Mas ela entendeu. Talvez ele não quisesse perder a direção. Conversaram sobre assuntos banais, nada relacionado ao dia anterior. Elogiou sua roupa, mas achou-a um tanto usada. Melissa corou. Após uns 15 minutos, pararam frente a um drive-in. O carro entrou. Ele estacionou, alguém fechou as cortinas do box e ele a fez ir para o banco de trás. Sem muitos beijos ou carinhos. Ela obedeceu. As mãos dele novamente começaram a percorrer seu corpo, tirando sua blusa e subindo sua saia, enquanto ela tentava massageá-lo por fora da calça. Abriu seu zíper e abaixou a calça achando que lhe faria a massagem de ontem. Quando ia começar os movimentos ensinados, ele o pôs em sua boca. Os movimentos agora eram de vai e vem, que quase a fez vomitar, pois várias vezes encostou em suas amídalas. Já achando que aquilo que tivera que lavar ontem de suas mãos, ela engoliria desta vez, Bruno fez um movimento brusco e começou a colocar a camisinha. Ela se assustou. Mas não disse nada. Não queria imaginar o que estava por vir. Não fora assim que ela planejara. Não era assim nos filmes de romance ou nos contos que lera. Onde estava a cama? As rosas? Os beijos suaves e o olhar doce de um amor recém-nascido? Ele sentou-se no banco e a fez sentar em cima dele. Aquele ato doeu. Doeu muito. Parecia que algo queimava dentro de si. Não conseguia sentir prazer algum. Mordia os lábios para não gritar, enquanto ele a agarrava pela cintura forçando um sobe e desce interminável. Seu ventre ardia. Os gemidos dele foram ficando cada vez mais altos. Ela queria gritar. Mas não podia. Morreria de vergonha. Até que o movimento cessou com um urrar juntamente com uma feição de dor que saiu da boca de Bruno. Ela deu graças por tudo aquilo ter terminado. Ele a sentou ao seu lado, enquanto descansava. Olhou para seu rosto de assustada, retirou uma toalha do porta-luvas e a fez se limpar. Havia sangue em sua virilha. Poucas palavras foram trocadas e beijo algum foi dado. Ainda com dor, sentou-se no banco da frente, enquanto ele abria a cortina do box e pagava a uma senhora de rosto cansado. Deixou-a na porta do shopping e saiu arrancado. Precisava voltar para casa. O carro fora pego às escondidas, enquanto a mãe estava em uma vizinha participando do grupo de leitura. Uma lágrima rolou do lindo rostinho da Melissa. Para ele, foi mais uma para a conta, já fazendo parte da lista das esquecidas. Para ela, começava uma tortura por uma paixão que nunca existiu.

Bichos

No semáforo, aguardam a parada dos carros. Pedem descontroladamente qualquer quantia em dinheiro ou objeto que venha a lhes servir para se tornarem motivo de mais brincadeiras. A seriedade não existe, é apagada instantaneamente perante tal situação. Prestam-se a palhaçadas e atitudes não louváveis, entre elas, a humilhação. E o fazem divertindo-se. Acham o máximo, como se melhor momento na vida não existisse. Será que se esquecem que existe o sexo? Acredito que não. A básica diferença no tratamento que dirigem aos motoristas está no gênero e companhia deste. Quando é um casal ou apenas homens dentro do carro, não insistem ou lidam com frases mais apelativas para o sentimento de bom moço. Agora, quando se tem uma motorista, sozinha, e jovem, aí a história muda. Parada no farol, com o vidro aberto por conta de seu cigarro, não teve alternativa senão ouvir o que eles tinham a dizer: nada. Apenas palavras vazias de xavecos mal formulados. Atiçavam-se entre eles e tratavam de chamar o máximo de atenção. Com palavras de cunho não muito educados, e muito menos doces, comentavam desde o esmalte até a cor de seu sapato. Olhares que não paravam de cima a baixo, acompanhados de perguntas sobre o telefone, endereço, se tinha algo a fazer mais tarde ou se não queria colocá-los dentro do carro para uma ‘aventura inimaginável’. ‘Eu te amo’ fora dita repetidas vezes por todos, entre outras declarações, que saiam livremente de suas bocas não se importando com os sentimentos verdadeiros que essas palavras significam para um casal realmente apaixonados pela vida. Nada a jovem podia fazer senão com um sorriso dar-lhes a atenção dos 45 segundos que se seguiam naquele sinal vermelho. No final, ficaram apenas três. Já desistindo de qualquer palavra que aquela motorista poderia dirigir a eles, um tomou a liberdade de pedir um cigarro, e esta o deu. Não custava. Seria tudo o que eles poderiam conseguir dela: um câncer futuro.

Sem sono

Sem sono, a garota que ainda tem uma certa beleza e lhe sobra alguma inteligência, entra em um grupo da madrugada para bater-papo. Nome de um perfil fake, com uma foto tratada em photoshop para atrair a atenção dos rapazes, posta: alguém ainda acordado? Imediatamente dez outros personagens respondem e já começam com perguntas e frases que desanimam a cada segundo. Criatividade zero. Mas dá para filtrar e começar a conversar. Conversa vai, conversa vem. As perguntas mais sacadas são respondidas, o papo rola legal, QI não pode mais ser considerado como mediador de inteligência, então ela deixa as teclas fazerem seu papel. Até que se adicionam no WhatsApp, uma vídeo-chamada acontece. E pasme, a realidade: beleza, só se for a do interior. Também! O bonito tem que ser mostrado, e com certeza não é através de um Facebook. Desiludida, bloqueia os novos integrantes, e volta para cama, mas desta vez para ler um livro. Ao menos, alguma coisa verdadeiramente útil será acrescentada em sua vida desta vez.